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A representação do autismo e seus contextos em ''Ocean Heaven'' (2010)

Atualizado: 27 de dez. de 2023

poster promocional do filme Ocean Heaven

Ocean Heaven (2010) conta a história de um pai e seu filho autista. Dafu (Wen Zhang) é um jovem de 22 anos que, diferente das outras pessoas, parece sempre distraído, repete o que as pessoas lhe dizem, mantém tudo em casa em lugares específicos e tem uma paixão por nadar, assim como sua falecida mãe. Seu pai, Wang Xincheng (Jet Li), trabalha em um aquário e demonstra um extremo cuidado e carinho pelo filho, e, mesmo com todas as dificuldades, os dois conseguem viver bem juntos. Contudo, após receber um diagnóstico preocupante, Wong compreende que um dia deixará o mundo e que seu filho ficará sozinho, algo que se torna um problema e segue como trama principal do filme.


De maneira emocionante e leve o filme apresenta ao espectador a vida de Wang e Dafu, expondo questões reais e cotidianas das famílias que convivem com pessoas com autismo, a dificuldade de inclusão e a importância do treinamento de habilidades e como prepará-los para o futuro. Diante destes tópicos, este ensaio objetiva analisar algumas situações do filme para serem discutidas à luz da bibliografia selecionada. O tema em questão foi escolhido por conta do filme, ao qual gostei e desenvolvi interesse na possibilidade de entender mais sobre a condição exposta.


Autismo: características e representação

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma síndrome marcada pelo comprometimento sério das interações sociais, na comunicação e no comportamento. A primeira descrição dessa síndrome foi apresentada pelo psiquiatra austríaco Leo Kanner (1894-1981), em 1943, após analisar casos de 11 crianças que possuíam algumas características em comum, como por exemplo, ‘‘(...) desejo muito forte de solidão e ausência de mudança” (BIALER & VOLTOLINI, 2022), para mais tarde serem denominadas por Kanner como um conjunto de características que compõem os distúrbios autísticos do contato. Quando se fala de criança e comportamentos, é essencial pensar sobre o que é normal e o que é patológico, todo grupo social possui regras de conduta que influenciam, direta ou indiretamente, na forma como as pessoas irão se portar.


Logo, quando algo em uma criança ou adolescente é definido como anormal, pode ser decorrente de uma quebra de expectativa social ou resultante de perturbações familiares ou sociais, por exemplo. Segundo Dumas (2011), para que um comportamento ser considerado anormal e, talvez, patológico, é necessário que o mesmo corresponda alguns dos critérios a seguir: 1) Excesso ou insuficiência, a depender da sua frequência e em comparação às outras pessoas em circunstâncias semelhantes; 2) Infração às normas, quando não correspondem às expectativas familiares, sociais e culturais; 3) Atraso ou defasagem de desenvolvimento, quando atrasa ou dificulta o desenvolvimento da criança, desencadeando consequências negativas; e 4) Entrave ao funcionamento adaptativo, quando perturba o curso habitual do desenvolvimento e causa um sofrimento evidente para o jovem e para a família. Surge, dessa forma, a necessidade de um cuidado ímpar para analisar essas situações antes da definição de um diagnóstico, pois ‘‘(...) todos os quadros de referência selecionados comportam exceções nas quais se insinua o patológico’’ (MARCELLI & COHEN, 2020). Além disso, é essencial não ter o diagnóstico, caso ocorra, como algo concreto, um fim, mas sim como um meio de buscar um maior desenvolvimento daquele sujeito.


Em Ocean Heaven, Dafu já inicia como um jovem adulto de 22 anos, ou seja, não é exposta a trajetória do personagem desde a infância e nem como ou quando foi concretizado o seu diagnóstico. Porém, é possível notar características do autismo no personagem durante todo o filme quando ele se movimenta de uma forma muito mecânica, se comunica com muitas repetições, posiciona objetos de formas específicas, não faz muito contato visual e não permite muito contato físico (MARCELLI & COHEN, 2020; DALGALARRONDO, 2019; DUMAS, 2011). Os transtornos do espectro autista se caracterizam por comportamentos e particularidades que surgem no início da vida, nos primeiros três anos; parte dessas crianças não desenvolve a linguagem adequadamente e quando desenvolve alguns elementos, é provável o desencadeamento de uma regressão futuramente, como, por exemplo, referir-se na terceira pessoa (DALGALARRONDO, 2019). Durante o filme, não é informado se houve essa regressão de linguagem, contudo, Dafu se comunica com repetições das falas direcionadas a ele, quase sempre em terceira pessoa e, quando ocorre dele falar algo por si, geralmente ele utiliza palavras, como ‘‘fome’’, ‘‘nadar’’ para indicar o que deseja. Além disso, o personagem se comunica com pessoas específicas, como seu pai ou a sua tia, mesmo que com menos frequência, e quando é necessário que ele fale com pessoas desconhecidas o mesmo não se pronuncia nem parece se fazer presente, pois não faz contato visual.


Outros elementos de suma importância para o diagnóstico de TEA, segundo Dalgalarrondo (2019), são os comportamentos estereotipados, repetitivos: balanceio, flapping com as mãos, estalo de dedos, ruídos com a língua ou garganta; também são identificadas as ecolalias, que seriam formas das pessoas se expressarem repetindo palavras que ouviram, podendo, por exemplo, ser utilizadas como uma saída sensorial — uma forma dessa pessoa mesma se acalmar quando estão ansiosas, agitadas ou para lidar com desafios sensoriais. No filme, Dafu também exibe esses comportamentos, ele sempre está balançando as mãos repetitivamente enquanto anda e, durante todo o filme, ao acordar ele arruma alguns objetos pela casa (exemplo: colocar o cachorro de pelúcia sobre a televisão, mesmo que o pai retire e reclame). Então, é possível identificar um padrão de tarefas que, quando rompidas, mesmo de uma forma mínima, causam incômodo. A partir desse conjunto de características, ele demonstra estar no nível 2 ou moderado dos espectros autistas.


personagens do filme Ocean Heaven, pai e filhos sentados em um barco no meio do mar

Autismo e família

No decorrer do filme, o espectador é surpreendido com a notícia de que Wang, pai de Dafu, recebeu o diagnóstico de um câncer em estágio avançado e, infelizmente, o médico o informa que é muito provável que ele não viva por muito tempo. O desespero toma conta de Wang de uma forma tão grande que ele chega a tentar se matar, porém também levando Dafu com ele: ele amarra uma corda nele e no filho, fala para o filho que eles iriam nadar, e eles pulam de um barco no meio do mar. Contudo, como foi informado previamente, Dafu ama nadar e sabe fazer isso muito bem, então, talvez sem nem se dar conta, ele consegue evitar o pior.


Ambos voltam para casa e Wang parece estar muito pensativo sobre o ocorrido ou sobre o que ele iria fazer, qualquer outra pessoa que poderia ajudar, como a sua irmã, por exemplo, não parecia suficiente, ninguém poderia ajudar Dafu como ele fez todos esses anos. Desde o começo do filme, é notório que o personagem é dependente do pai para fazer coisas simples, como tomar banho ou se vestir, algo bem comum, pois, segundo Serra (2012) após um período de luto simbólico por conta do diagnóstico, a forma como a família reage pode ser determinante para o desenvolvimento do filho. Dessa forma, muitos pais, por não acreditar no potencial dos filhos, deixam de ensinar coisas essenciais para o autocuidado, desenvolvimento pessoal e independência, o que pode gerar o isolamento ou infantilização dessas pessoas. Essas consequências não acontecem no filme, mas são expostas outras situações negativas, como a infantilização e a falta de independência.


É possível perceber que, durante momentos do filme, Wang comporta-se diferente: nervoso, sem paciência e frustrado. Essas percepções geralmente aparecem em cenas que ele tenta ensinar Dafu a realizar uma atividade ou comportamento, mas ele não se adapta bem, o que é normal pela condição dele e também por ser algo que exige constância e paciência para ser internalizado como algo cotidiano. ‘‘Os sentimentos da família sobre a deficiência de seus filhos são cíclicos e podem transitar entre a aceitação e a negação, especialmente nas mudanças de fases da criança.’’ (SERRA, 2012). Logo, conclui-se que essas reações são comuns, pois os pais possuem sentimentos e expectativas de sua relação com os filhos e filhas. Contudo, ainda assim, são aspectos negativos em relação ao desenvolvimento de uma relação com a pessoa com autismo, uma relação que já existe uma dificuldade por conta da ausência da troca afetiva e da comunicação. Dessa forma, surge a necessidade de refletir sobre o que se esperar dessa pessoa, repensar o que e como se deve fazer em relação à essa pessoa com autismo e, acima de tudo, questionar se essa pessoa quer fazer o que você propõe. É uma necessidade ou uma vontade do pai/mãe?


personagens do filme Ocean Heaven, pai segurando no rosto do filho

Autismo e políticas públicas

Depois da tentativa trágica de morrer e levar o filho consigo, Wang decide os seus objetivos: ensinar tudo que ele consiga e que Dafu precise para viver sozinho; e encontrar um bom abrigo e confiável para o filho viver. Inicialmente, ele foca em apenas conseguir um abrigo, então ele entra em contato e visita diversas casas de apoio/abrigo para pessoas com deficiências ou casas específicas para autistas. O que o filme relata é a realidade: desassistência. A maioria das casas que eram específicas para pessoas autistas apenas aceitavam crianças e adolescentes ou estavam lotadas; as outras casas, que aceitavam uma diversidade de condições, eram alarmantes em todos os sentidos: de cuidado, de estrutura e de profissionais. A última que Dafu e Wang visitaram merece destaque, pois os quartos possuíam grades nas portas e a pessoa que ficava perto, provavelmente para auxiliar, parecia ser um tipo de segurança. Nada ali representava um local de conforto e apoio.


Foram carências de políticas públicas como essas que contribuíram para que familiares e pais de pessoas autistas se organizarem em grupos de comunicação e ajuda; no Brasil o primeiro grupo organizado foi o da Associação dos Amigos dos Autistas de São Paulo, AMA-SP, em 1983 (COSTA & FERNANDES, 2018) com o objetivo de compartilhar conhecimento e troca de experiências sobre o autismo, antes da construção do SUS. A partir do crescimento da AMA e a construção de diversas outras associações com objetivos parecidos, a mobilização das famílias corroborou na aprovação Lei nº 12.764 que em 2012 estabelece uma política de proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista onde, além de reconhecer o autismo como uma deficiência legalmente, promove a inclusão no campo assistencial, político, científico/acadêmica, educacional e no campo dos direitos básicos. Em suma, toda uma trajetória de resistência e evolução foi percorrida para que hoje a população autista conseguisse garantir e utilizar os seus direitos, mesmo que ainda persistam alguns entraves na qualidade e quantidade de assistências. A ausência de estudos de prevalência do autismo no Brasil prejudica o mapeamento nacional, logo, também faltam políticas públicas para auxiliar o acompanhamento e tratamento de pessoas diagnosticadas e para investir em acompanhamentos precoces.


Conclusão

Após as frustrações durante as procuras de um abrigo, inesperadamente, um dos locais que era coordenado por uma conhecida de Wang consegue uma vaga para Dafu. Wang decide, além de ensinar as necessidades que Dafu precisa, também se instalar no abrigo para fazê-lo se acostumar aos poucos, como um período de transição. A partir dessa decisão, os dois percorrem uma trajetória de erros, acertos, tentativas e muita persistência, mas, dessa vez no tempo de Dafu: aos poucos ele consegue adicionar em sua rotina e comportamentos características que dão para ele mais independência pessoal e social. Mesmo com o desenvolvimento de Dafu, sabemos que o mundo real continua sendo difícil, ainda são necessárias medidas sociais, políticas e outros parâmetros para que tudo estejam em um equilíbrio. Contudo, no final do filme é bom ver que o personagem consegue exercer os seus direitos e deveres, dessa vez sem o pai e com muito mais independência.

O filme expõe ao espectador situações que fazem refletir sobre a situação das pessoas com transtorno do espectro autista no Brasil que, mesmo sendo referência em direitos de proteção e inclusão das pessoas com deficiência, avançando bastante nos últimos anos (COSTA & FERNANDES, 2018) — ainda exibe ocorrências de falta de assistência, insuficiência de vagas, preconceitos e falta de informação. É essencial pensar na qualidade de vida que essas pessoas possuem, viver apenas por viver não é o esperado; pessoas com TEA tem direito a lazer, saúde, trabalho, educação, acessibilidade, para que se tenha realmente uma inclusão e independência social eficazes. Por fim, o que fica de mais positivo do filme, além da evolução do personagem, é a relação pai-filho, pois, assim como na história, existem milhares de familiares que se desdobram para que seus filhos tenham o essencial e um futuro digno, assim como é de direito, e essas pessoas foram bem representadas.


Como citar

FARIAS, Alana Mara. A representação do autismo e seus contextos em Ocean Heaven (2010). Blog AMF, Salvador, 29 de junho de 2023. Disponível em: https://alanamarafarias.wixsite.com/blog/post/a-representação-do-autismo-e-seus-contextos-em-ocean-heaven-2010


Referências

BIALER, M.; VOLTOLINI, RINALDO. AUTISMO: HISTÓRIA DE UM QUADRO E O QUADRO DE UMA HISTÓRIA. Psicologia em Estudo, v. 27, 13 dez. 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.4025/psicolestud.v27i0.45865. Acesso em: 26 Maio 2023.

BOSA, C.; CALLIAS, M.. AUTISMO: BREVE REVISÃO DE DIFERENTES ABORDAGENS. PSICOLOGIA: REFLEXÃO E CRÍTICA, v. 13, n. 1, p. 167–177, 2000. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000100017>. Acesso em: 26 Maio 2023.

COSTA, M. M. M. da; FERNANDES, P. V. Autismo, cidadania e políticas públicas: as contradições entre igualdade formal e igualdade material. Revista do Direito Público, [S. l.], v. 13, n. 2, p. 195–229, 2018. DOI: 10.5433/1980-511X.2018v13n2p195. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/direitopub/article/view/30152. Acesso em: 12 jun. 2023.

DALGALARRONDO, Paulo. PSICOPATOLOGIA E SEMIOLOGIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019.

DUMAS, Jean E. PSICOPATOLOGIA DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA. Porto Alegre: Artmed, 2011.

MARCELLI, Daniel. COHEN, David. INFÂNCIA E PSICOPATOLOGIA. Porto Alegre: Artmed, 2010.

OCEAN HEAVEN. Direção: Xiao Lu Xue. China. 2010. Youtube.

SERRA, DAYSE. AUTISMO, FAMÍLIA E INCLUSÃO. POLÊMICA, [S.l.], v. 9, n. 1, p. 40 a 56, mar. 2012. ISSN 1676-0727. Disponível em:<https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/2693>. Acesso em: 12 jun. 2023

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