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''A representação do eu na vida cotidiana’’, reflexões sobre os conceitos de Fachada e Apresentação de Si

Atualizado: 27 de dez. de 2023

imagem em looping de mão segurando um rosto

'‘A representação do eu na vida cotidiana’’, obra de Goffman (2002), vai apresentar sobre o fenômeno que são as interações sociais, refletindo sobre a apresentação ou performance do eu, pessoa ou equipe, nos papéis e ações realizados na presença de outros. O autor busca compreender o modo como os indivíduos interpretam as informações e as pessoas que fazem parte da interação social, e como esta interpretação conduz os comportamentos durante essas interações face a face. A partir da perspectiva da representação teatral e seguindo princípios de caráter dramatúrgico, Goffman descreve em seu livro como ocorrem essas interações em situações comuns e cotidianas, em espaços específicos e contextualizados.

Considerarei a maneira pela qual o indivíduo apresenta, em situações comuns de trabalho, a si mesmo e a suas atividades às outras pessoas, os meios pelos quais dirige e regula a impressão que formam a seu respeito e as coisas que pode ou não fazer, enquanto realiza seu desempenho diante delas. (Goffman, 2002, p. 9)

É interessante pensar a partir dessa perspectiva, pois, como indivíduos que estão a todo tempo interagindo e lidando com contextos diversos e sabendo que, socialmente, certos comportamentos e ações são esperados, mas também vigiados e julgados, as pessoas tendem a ensaiar, programar e refletir sobre como se portar. ‘‘Presume-se que a vida apresenta coisas reais e, às vezes, bem ensaiadas.’’ (p.9). Ou seja, seria algo comum, porém, como vai trazer o autor, não se trata de apenas ensaiar um comportamento para uma entrevista de emprego, por exemplo. As interações sociais são desempenhadas de um modo internalizado e fluido, não é algo que se pensa em fazer, mas, sim, feito; as mesmas acontecem quando os indivíduos exercem influência uns aos outros.


Para Goffman, a capacidade de dar impressão pode ser transmitida ou emitida, a primeira é de forma intencional, utiliza a comunicação e símbolos verbais conhecidos pelos indivíduos presentes na interação, já a segunda é supostamente não intencional e utiliza de artifícios não verbais. Essa impressão é dada pela expressão que a pessoa realiza de si mesmo para os outros e a partir do que outros podem achar. Goffman vai utilizar principalmente das informações emitidas para compreender que as mesmas podem fazer parte de uma comunicação arquitetada intencionalmente, já que uma emissão geralmente se associa a transmissão e trocas de informações. Quando os outros captam a impressão que foi fornecida pelo ator, é possível afirmar que ocorreu uma comunicação efetiva. Inclusive, esse fluxo de impressões é orientado pela confiança e expectativa das pessoas que estão interagindo; a primeira é a confiança da representação da pessoa e naquilo que ela está passando para a outra, e a segunda é a expectativa projetada pela outra pessoa dentro da

interação, algo pautado nos estereótipos e nos papéis já conhecidos socialmente.


Dessa forma, é relevante refletir como o outro é essencial nessa teoria, além de que sem o outro não existiria uma interação, esse indivíduo também é o espelho utilizado para entender o que deve ser feito, socialmente falando; é o parâmetro do que é certo ou errado dentro de um contexto, e vice-versa, pois se trata de uma troca comunicativa. Nessa discussão é possível incluir o conceito de idealização, pois o indivíduo tende a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade (Goffman, 2002). É comum e esperado que as pessoas suprimam desejos, defeitos e criem um personagem que vai ser aceito em determinado contexto; uma pessoa pode ser totalmente diferente em locais diversos, exemplos cotidianos e evidentes sobre isso são representações de pessoas no trabalho, na família, na amizade e entre outros. A angústia desenvolvida a partir da ideia de juntar pessoas de diferentes ciclos sociais é válida quando se reflete como uma pessoa deve se portar, algo que parece simples, ‘‘seja você’’, mas que cai em um questionamento eterno de ‘‘quem devo ser?’’.

imagem do interior de uma sala de teatro

Como foi dito anteriormente, Goffman utiliza de uma metáfora ambientada no teatro, logo, os componentes das interações sociais são o ator, plateia e observadores. A representação, que é definida pelo autor como ‘‘(...) toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência’’ (p. 29), vai ser a forma como as pessoas ou atores vão atuar socialmente, carregados de intenções e significados. Além disso, as atuações podem ser divididas em duas: a sincera, que acontece quando o ator está comprometido da sua ação, convencido de que a impressão que passa é a realidade e o seu público também está convicto da realidade da representação; e a cínica, que ocorre quando o ator não está completamente seguro da sua prática e não se interessa pelo que seu público acredita (Goffman, 2002). É também por conta disso, inclusive, que nesse ‘‘jogo’’ se mantém uma assimetria entre ator e plateia/observador, pois o outro sempre estará na vantagem por ter a capacidade de perceber a manipulação do comportamento,

que é maior que a capacidade de manipular.


Socialmente as palavras ‘sincero’ e ‘cínico’ carregam significados muito marcados sendo, respectivamente, positivo e negativo. Porém, esse aspecto não é empregado aqui, pois não necessariamente as pessoas que estão representando um papel possuem objetivos tidos como positivos ou negativos por estar executando uma performance sincera ou cínica. Ou seja, para melhor entendimento, é interessante pensar nessas categorias como o tanto de confiança e comprometimento que essas pessoas possuem ao representar o seu papel social. Em ‘‘Queda Livre’’, episódio da terceira temporada de Black Mirror (2011-atual), é possível identificar essas categorias na personagem Lacie, onde a personagem oscila entre uma atuação sincera e cínica; no primeiro acreditando tanto no seu papel que inclusive se vê como merecedora das recompensas esperadas, e no segundo quando fica chateada ao receber uma nota baixa após uma conversa em que ela não estava 100% confiante.


Em suma, a partir do livro de Goffman, este ensaio objetiva compreender e debater sobre a fachada, a apresentação de si e como essas ferramentas podem ser identificadas a partir de exemplos fictícios e do dia-a-dia.


A FACHADA

A fachada social, segundo Goffman, é definida como um ‘‘[...] equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua atuação" (2002, p. 29). De forma mais detalhada, a fachada é um conjunto de comportamentos expressivos feitos de forma regular, podendo possuir ou não aspectos fixos, contém características que permitem identificar um sujeito e vai funcionar a fim de definir a situação para os que observam a representação. Logo, é possível concluir que a fachada é tudo aquilo que os espectadores observam, seja palpável ou não, do ator durante uma performance.


Agora, para entender melhor como funciona essa ferramenta, é essencial discorrer sobre os seus componentes, que vão cooperar para que a representação seja coerente e favorável para o ator. O primeiro componente da fachada é o cenário, ‘‘[...] compreendendo a mobília, a decoração, a disposição física e outros elementos do pano de fundo que vão constituir o cenário e os suportes do palco para o desenrolar da ação humana executada diante, dentro ou acima dele’’ (Goffman, 2002, p. 29). Um exemplo clássico e memorável é o cenário de sala de aula que, mundialmente, possui uma mesma configuração e seus atores promovem uma representação que pode ser conectada ao papel do professor. Porém, o cenário não compõe apenas o que está ao redor do ator, mas também tudo o que vai ser utilizado por ele como suporte durante uma encenação; suporte esse que não só compõe a cena, mas também reforça e confirma o que está sendo representado como verdadeiro. Apesar de ser algo fixo, o cenário pode se deslocar: Goffman vai usar o exemplo do enterro como uma situação excepcional em que o cenário acompanha os atores, como uma proteção extra.


É interessante refletir que, já que o cenário faz parte da fachada de todas as pessoas, faz sentido as pessoas se sentirem tensas em determinados locais, não só por aspectos como estar em público, por exemplo, mas também pelo quanto o ambiente pode impactar os atores. Por conta disso existem, segundo Goffman, as medidas protetivas e preventivas, contudo, será que essas medidas serão eficazes ou bem executadas quando o seu ator está tenso, nervoso ou ansioso? Às vezes são aspectos que não dependem estritamente daquela pessoa estar convicta ou não, mas sim de toda a soma de situações, contextos e pessoas ali presentes. Um exemplo para ilustrar melhor: a prova do Detran para ser habilitada, uma pessoa pode estar muito bem preparada, segura e indo bem nas aulas práticas, mas, ao chegar no ambiente da prova, notar como funcionam os processos e ter todas aquelas pessoas te observando, a pessoa pode não conseguir desempenhar e manter a fachada de aluna eficiente, segura e capaz de dirigir.


Agora, dando segmento, o cenário faz parte de uma grande porcentagem do que vai trazer o significado e a fixação do contexto da situação social específica, porém, a fachada social também possui como componente a fachada pessoal; dividida em maneira e aparência. A fachada pessoal pode ser considerada uma forma ‘‘[...] de modo mais íntimo [de] identificamos com o próprio ator, e que naturalmente esperamos que o sigam onde quer que vá’’ (Goffman, 2002, p. 31); é formada por aspectos como roupas, sexo, idade, características raciais, altura e visual, sendo esse conjunto denominada como Aparência. Além disso, estão nesse conjunto atitudes, padrões de linguagem, expressões faciais, gestos corporais e outros semelhantes executados pelo ator, conjunto denominado como Maneira. Como foi dito anteriormente, algumas características são fixas, como a raça e altura, mas outras são variáveis, como vestimenta e expressões faciais, e vão depender da representação que está ocorrendo. Nessa divisão de características da fachada pessoal, onde estão a aparência e a maneira, onde

A aparência é colocada como um estado ritual do ator, que ajuda a compreender que tipo de relação ele está estabelecendo, se profissional ou informal, por exemplo. Já a maneira revela sobre o tipo de interação que se espera, como grosseria ou generosidade. (Scarcello, 2020, p. 7)
personagem Lacie de Black mirror em um restaurante ao ar livre tirando foto do seu café

Dessa forma, a aparência e a maneira em conjunto vão colaborar para que a representação executada pelo ator/pessoa seja entendida favoravelmente e reforçar o que o cenário também está impondo quando é feita a leitura da situação social vigente. Utilizando novamente como exemplo o episódio ‘‘Queda Livre’’, é possível identificar em cada personagem e suas fachadas pessoais um equilíbrio, é evidente como as cores e vestimentas mudam e informam sobre as notas de cada personagem. A Lacie, por exemplo, no início do episódio aparecia com roupas e em locais apenas com cores suaves e tons pastéis e, gradualmente, vai mudando para tons mais fortes e escuros no decorrer dos acontecimentos da história. Em seu ambiente de trabalho, todos vestem roupas em tons claros, há uma organização na imagem de cada personagem (Scarcello, 2020). Ou seja, há um conjunto de pontos que se encontram em uma expressão coerente da fachada e que é esperado pelos outros personagens, pois, se ela aparecesse toda suja e mal vestida, como acontece no final do episódio, ocorreria uma reação geral de incredulidade, choque e julgamento, por exemplo.


Para aprofundar um pouco mais sobre os componentes do processo de formação e performance da fachada que irão ser abordados a seguir, é necessário falar de outros dois atributos importantes: o papel social e a linha de atuação. O primeiro componente, o papel social, basicamente seriam os papéis existentes em cada situação social específica que possuem uma representação contextualizada e reconhecida socialmente. Dessa forma, o médico é um papel social dentro do contexto de um hospital, por exemplo. Já o segundo componente, a linha de atuação, seria a forma como o ator/pessoa vai desempenhar esse papel dentro desse contexto, ou seja, uma pessoa pode escolher representar a linha de atuação que vai conectar o seu eu médico como uma profissional boa, eficiente, gentil e profissional; assim essa pessoa passa a ser reconhecida como tal. O papel e a linha de atuação também vão impactar em como a maneira e a aparência vão ser construídas, além de também serem parte do processo de apresentação de si.


APRESENTAÇÃO DE SI

A apresentação de si é uma forma de construção e desenvolvimento da fachada, são momentos em que ocorre a observação e controle dos comportamentos expressivos que irão resultar na fachada, sendo algo que acontece nos bastidores de uma atriz. Ou seja, a apresentação de si faz parte de um conjunto de processos constituintes e inerentes às relações sociais (Almeida, 2022). Esses processos são desencadeados a partir da preocupação e reflexão da impressão que pode ser passada para os outros durante as interações sociais, é através dessas análises que as apresentações são ajustadas dentro dos limites estabelecidos e aceitos em ambientes específicos. Logo, é uma análise que é feita antes do momento da interação social. Algumas das funções da apresentação de si são: influência interpessoal, realce da construção da fachada, manutenção da autoestima, promoção de emoções positivas e o exercício de poder. Além disso, as motivações para passar pelo processo de apresentação de si são: obtenção de metas, geração e manutenção de expectativas, tomada de medidas cautelares e evitação de fracassos.


Ao analisar superficialmente, é possível presumir que esses conceitos de Goffman reforçam muito a ideia da existência massiva de manipulações durante as interações sociais, que as pessoas não são ‘‘verdadeiras’’. Mas o que é realmente ser verdadeiro? O viver em sociedade é um fenômeno extremamente complexo, a construção de regras, normas e condutas em lugares específicos surge como uma forma, sim, de controle social, porém, em certas medidas, como uma maneira de equilibrar as relações. Como Goffman expõe, a fachada é desenvolvida pensando em contextos e situações específicos, onde os papéis e linhas de atuação que são escolhidos foram também construídos socialmente. Dessa forma, mesmo que os processos de mudanças de significados e associações sociais demorem, ainda assim são possíveis e não invalida as pessoas estabelecerem as suas linhas de atuação de uma forma própria. ‘‘Na maior parte do tempo os indivíduos não estão se comportando com o objetivo final de causar impressões, mas em outros casos estão bastante cientes do que querem mostrar sobre si para o outro’’ (Almeida, 2022, p. 21).

personagem Lacie de Black mirror em frente ao espelho

Em Black Mirror, no começo do episódio ‘‘Queda Livre’’, é possível ver Lacie na frente do espelho ensaiando expressões faciais para sorrir e dar risadas naturais que favoreçam mais a sua aparência, treinando formas de falar simpáticas e entre outras características que a podem favorecer. Além disso, quando ela tem que ensaiar para um discurso em um casamento, ela treina exaustivamente para que o discurso seja emocionante e, até mesmo, força o choro para ser real o sentimento. No mundo em que a personagem vive os processos de apresentação de si são tão importantes e marcantes que os personagens possuem um espaço de consultoria para que possam melhorar a pontuação e reputação socialmente. ‘‘Bons encontros geram boas avaliações, é preciso mostrar cuidado e atenção ao outro, gerando coisas boas em troca, tudo isso de forma natural’’ (Scarcello, 2020, p.12). Esse natural que é enfatizado pelo consultor como essencial para que as relações não sejam lidas como estranhas ou forçadas, é bem questionador, pois existe uma pressão social na Lacie e, claramente, ela já não consegue executar tão bem o seu papel. Inclusive, após essa consultoria, uma cadeia de acontecimentos negativos vão se formando e gradualmente piorando a situação da personagem.


O que Lacie faz durante as suas interações já no final do episódio, mas não consegue um desempenho positivo, é a prevenção da fachada, conceito que vai atuar como um complemento da apresentação de si, sendo uma ação que ocorre durante a interação. Basicamente seriam um apanhado de estratégias empregadas pelos indivíduos para evitar a quebra da fachada ou algum constrangimento que provoque essa quebra, logo, colabora para a manutenção e construção da fachada (Goffman, 2002).


Na vida real, a apresentação de si parece ser bem menos nociva como foi exposto na série, principalmente por se tratar de uma ficção, e mais reflexiva. Contudo, quando esse conceito é anexado com alguma categoria social, como raça, classe e gênero, por exemplo, é possível pensar em situações compulsórias de autoanálise, autocrítica e insegurança. Dessa forma, a relação com essas divisões sociais, podem agregar impactos negativos, como uma internalização de estigmas sociais; conceito abordado por Goffman, porém, como não foi melhor difundido em aula ainda, penso não ser interessante aprofundar neste ensaio.


CONCLUSÃO

Os estudos de Goffman vão colaborar para que as interações sociais sejam minuciosamente destrinchadas, analisadas e entendidas. A partir do seu livro, é possível notar como a experiência de comunicação e interações sociais é complexa, a forma como o autor utiliza seus exemplos e a própria perspectiva dramatúrgica vão ser essenciais para facilitar a compreensão e ampliar o olhar do leitor sobre cada detalhe durante interações sociais. O conceito de fachada e de apresentação de si vão servir para o entendimento de como ocorre a construção de cada pessoa diante dessas interações, mas também podem colaborar para reflexões de como essa construção ocorre em si mesmo.

Em suma, foi possível perceber que ambos os conceitos, fachada e a apresentação de si, são facilmente identificadas no cotidiano, pois, como partes essenciais da interação social, são construções que possuem destaque. Contudo, essa facilidade não se transfere para a percepção de construção de estratégias ou gerenciamento dessas estruturas durante essas interações.


Como citar

FARIAS, A. M.  ''A representação do eu na vida cotidiana’’, reflexões sobre os conceitos de Fachada e Apresentação de Si. Blog AMF, Salvador, 14 de novembro de 2023. Disponível em: https://alanamarafarias.wixsite.com/blog/post/reflexao-teoria-goffman-fachada-apresentacao-de-si


Referências

ALMEIDA, T. Influência da Comparação Social na Apresentação de Si de Adolescentes na Rede Social Digital Instagram. 19-29 p. Dissertação (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2002.

SCARCELLO, D. A. As representações do eu na vida cotidiana de black mirror/queda livre. TROPOS: COMUNICAÇÃO, SOCIEDADE E CULTURA (ISSN: 2358-212X), [S. l.], v. 9, n. 1, p. 1-21, Jul. 2020. Disponível em: https://periodicos.ufac.br/index.php/tropos/article/view/3179. Acesso em: 23 out. 2023.

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