Hoje, trago um texto que escrevi para o componente de Estudos das Culturas; o tema gira em torno do racismo e suas consequências, como leram no título, principalmente a partir das falas de Lélia Gonzales. Quando escrevi esse texto achei algo tão clichê (bem insensível esse pensamento inclusive, até comigo mesma) falar sobre essas dores e até pensei em reescrever antes de entregar pro professor, mas, pensando que muitos comportamentos não são conceituados como racismo, pois já foram normalizados, talvez não fosse tão clichê assim continuar falando sobre. É aquela coisa: se acontece, é porquê ainda não está resolvido e, nesse caso, não está mesmo! Boa leitura e, como sempre, todo comentário é bem-vindo!
Esse semestre participei de um debate, dessa vez como júri, e o tema foi sobre o movimento #VidasNegrasImportam. Entre defesas e falas contrárias, fiquei pensando e refletindo sobre como é difícil para algumas pessoas, sejam elas brancas ou não, digerirem, entenderem e/ou aceitarem a realidade que existe por causa do racismo. ''Racismo só existe mesmo nos EUA'', ''Isso é mimimi de vocês, puro vitimismo'', ''somos todos iguais, você procura o sofrimento'', ''foi só uma brincadeira, eu não vi maldade nenhuma''. É estranho falar isso, mas faz apenas 132 anos que sancionaram uma lei oficial para a abolição da escravatura no Brasil e, mesmo assim, historicamente falando, essa janela de tempo é pequena, ainda mais pensando que ainda hoje vemos as consequências desse fato histórico que foi a escravidão.
Hoje em dia, mesmo com algumas evoluções sociais em relação ao racismo, sabemos que isso é apenas uma ponta das consequências que precisam melhorar. Lélia Gonzales (1984) expõe que o racismo se constitui como uma assintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira, promovendo, juntamente com o sexismo, efeitos violentos sobre a mulher negra que, a partir disso, é colocada socialmente em três lugares: o de mulata, doméstica ou mãe preta. A mulata e a doméstica são atribuições de um mesmo sujeito: a mulata é endeusada no carnaval e transformada na rainha; a doméstica, em seu cotidiano, se torna a empregada doméstica que é ‘’(...) o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas’’ (p.8). Agora, retornando para os dias atuais, essas noções podem ser dissolvidas como vivências de várias mulheres negras onde:
1. A mulata se dissolve nas mulheres negras que são cotidianamente sexualizadas, transformadas em objetos e acorrentadas na solidão de não conseguirem um relacionamento, amoroso ou não, nem mesmo com os seus iguais; além disso, podemos citar como exemplo também os problemas com autoestima que aparecem no decorrer da vida;
2. E a doméstica caracteriza o cotidiano de uma mulher negra de classe média, por exemplo, que, segundo a autora, nunca são educadas o bastante ou bem vestidas o bastante para passar adiante sem sofrer nenhum tipo de discriminação social. A sensação é que não importa a sua imagem, sempre terá um olhar torno direcionado em sua direção.
Ainda falando sobre essas noções discorridas por Lélia Gonzales, a esperança vem por último: a mãe-preta. Segundo Gozales, ao citar Freyre, a mãe-preta é a que “cerca o berço da criança brasileira de uma atmosfera de bondade e ternura” (p. 343) ironizando que, ao virar uma boa figura, nós viramos gente. Afirmei a mãe-preta como esperança, pois essa é a ‘‘figura para a qual se dá uma colher de chá é quem vai dar a rasteira na raça dominante’’ (p. 13), essa figura é a mãe, a que amamenta, cuida e ensina a falar, ou seja, ela passa todos os seus valores, pensamentos e culturas para essa criança. Hoje essa nomeação, ao meu ver, é ressignificada, pois uma mulher preta, mãe e mais velha é um símbolo de respeito, admiração e resistência. Acho que esse ato de ser mãe para outras crianças que não são as suas, transformou-se em um ato de cuidado quando se está com pessoas que fazem parte do seu convívio. A minha vó, por exemplo, não só amamentou, mas também cuidou de filhos e filhas das nossas vizinhas desde que chegou na nossa atual casa em 1970 e poucos, e todas essas vizinhas que criaram um laço de amizade fizeram o mesmo com os filhos e filhas de suas amigas.
Além desses fatos que cercam o cotidiano das mulheres pretas, temos também a consequência que toda a população preta tem que enfrentar: o genocídio. Mês passado mesmo nos deparamos com vídeos e notícias sobre a chacina que aconteceu na favela do Jacarezinho: 27 pessoas mortas. Essa semana nos deparamos com a morte de uma modelo que estava grávida em uma comunidade no Rio de Janeiro e em Salvador, no bairro do Curuzu, mais duas mulheres mortas também por bala perdida de uma troca de tiros entre policiais e traficantes que, pelo visto, sempre encontra um alvo especifico para atingir... A partir das palavras de Clastres, o genocídio tem a sua raiz no racismo e o seu objetivo é o extermínio de uma minoria racial; ‘’(...) outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença’’ (p.56).
''Quando nós falamos do genocídio da população negra, a gente está falando que uma mãe que, muitas vezes foi abandonada pelo pai da criança, cria aquele filho com o maior cuidado do mundo e, de 23 em 23 minutos, ele pode simplesmente aparecer morto. Como você acha que estarão as condições emocionais e psicológicas desta mulher que já foi deixada de lado inúmeras vezes na vida? É praticamente inevitável que ela se torne muito depressiva e solitária.''
Falando de pontos ''mais leves'', há alguns anos atrás nós não tínhamos maquiagem no nosso tom de pele, não tínhamos cremes para cabelos crespos, não tínhamos pessoas negras, principalmente as mais retintas, na tv que não fizessem o papel de criminoso, piada, malvada e etc. Hoje nos temos cosméticos e podemos nos ver em revistas, séries, músicas, filmes, publicidades, universidades e muitos outros pontos. Será que as pessoas não enxergavam que nós não estávamos nesses locais? Que nós só aparecíamos para servir de piada ou de gente malvada? Sabe, são questões tão ingênuas que soa até estupido questionar; não nos vitimizamos, as pessoas que nos perpetuaram nesses lugares de apagamento... Vamos continuar, pois a revolta está começando a bater haha.
Há umas semanas, em minha aula de Racismo, Psicologia e Atenção à Saúde Mental, falamos sobre práticas antirracistas que fazemos todos os dias e a ‘resposta’ final que ficou foi: tudo, mesmo que seja mínimo, está valendo, principalmente as coisas que nos fortalecem como povo. Infelizmente, não sei como acabar com o genocídio negro ou com os estereótipos e preconceitos que nos fazem sofrer, porém estou estudando, assim como muitas outras pessoas, e sei que tal ato já é uma ajuda para melhorar nossa sociedade. Então, continue fazendo mínimo que você pode e, se puder, faça mais ainda: apoie uma ONG, faça parte dos movimentos, faça suas palavras e textos serem ouvidos e lidos, ajude pequenos comércios pretos, converse com sua família sobre, ouça podcasts, leiam livros, informem-se e ocupem espaços! Só não pode é ficar sem fazer nada, cada virgula conta, inclusive as que faltam, pois, segundo Almeida:
‘‘(...) se pessoas negras são discriminadas no acesso à educação, é provável que tenham dificuldade para conseguir um trabalho, além de terem menos contato com informações sobre cuidados com a saúde. Consequentemente, (...) a população negra terá mais dificuldade não apenas para conseguir um trabalho, mas para permanecer nele. (...) completando-se assim um circuito em que a discriminação gera ainda mais discriminação.’’ (ALMEIDA, 2019, p.96)
A partir das palavras de Almeida, eu pergunto: como vamos contornar todo esse ciclo vicioso de discriminação e racismo, se ficarmos parados? Isso não é uma confirmação para nunca descansarmos, porém é uma confirmação para fazermos aquilo que conseguimos.
Como citar
FARIAS, Alana Mara. Racismo - reflexões das consequências sociais’. Blog AMF, Salvador, 18 de jun. de 2021. Disponível em: https://alanamarafarias.wixsite.com/blog/post/racismo-reflexões-das-consequências-sociais
Referências
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência: pesquisas de antropologia política. (trad. Paulo Neves). São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
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