Jojo “Rabbit” Betzler (Roman Griffin Davis) é um menino de 10 anos que se considera o maior nazista existente. Criado pela mãe, Rosie (Scarlett Johansson), e afastado do pai, que está nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, o garoto vive sonhando com a possibilidade de ir à guerra e defender o seu país. Logo, com a ajuda do seu melhor amigo imaginário Adolf Hitler (Taika Waititi), ele se esforça para ser um bom membro da Juventude Hitlerista. Contudo, Jojo não poderia imaginar que sua mãe estivesse escondendo Elsa (Thomasin McKenzie), uma garota judia, atrás de uma parede falsa do antigo quarto de sua falecida irmã. Em geral o filme ‘‘Trata-se da brutalização e a lavagem cerebral sofridas pela juventude e as camadas sociais mais vulneráveis durante o Terceiro Reich (1933/1945).’’ (Geraldo, 2020)
O ensaio objetiva expor e comparar as representações que o filme exibe das categorias que são destinadas aos estudos da infância, além disso trazer também a discussão de alguns pontos essenciais, como a visão de Hitler como amigo imaginário, para serem discutidos à luz da bibliografia selecionada. Visto que Corsaro (1997) auxilia a reflexão de como as crianças são inseridas em nossa sociedade, pois as mesmas não apenas imitam ou reproduzem, mas também participam de processos de criação e transformação culturais, é interessante a possibilidade de extrair de Jojo Rabbit, com seu cenário e situações diferenciados, a imagem que é passada do ser criança em um contexto de guerra e os seus desdobramentos a partir desse contexto.
Juventude Hitlerista: crianças-soldado exercendo a cultura de pares
O longa-metragem é uma sátira, logo, apesar de expor assuntos de uma época áspera, usufrui de cenas com exageros de situações e comédia para deixar a trajetória mais leve, mas sem nunca perder seu simbolismo. Durante grande parte do filme, Jojo conduz o seu cotidiano de uma forma muito séria quando se trata de ajudar o seu país e ganhar a guerra. Contudo, é possível notar que existe muita inocência no conhecimento do mesmo sobre o mundo ao seu redor. Por exemplo, quando Jojo vai para o acampamento Juventude Hitlerista, ele se depara com práticas e ensinamentos de guerra, como crianças se atacando, exposição do uso de armas, entre outras coisas. É evidente o choque dele com essas situações, tão logo o mesmo age por impulso em uma tentativa de se familiarizar com o ambiente e com as pessoas, mas acaba se lesionando. Mesmo que o garoto não esteja no campo de batalha, algo similar acontece já no final do filme, isso já o coloca em uma situação de criança-soldado, por essa categorização ir além do combate corporal em si, tendo a visão ampla de ser ‘‘(...) como qualquer pessoa com menos de 18 anos que está envolvida com um grupo armado em qualquer função – inclusive como guerrilheiros, espiões, cozinheiros ou recrutados para fins sexuais, entre outros’’ (Mukherjee, 2021).
Além de Jojo, no filme essa categoria é vista em muitas crianças que continuam em suas atividades no acampamento e, em seguida, fora dele, nas ruas da cidade. Yorki (Archie Yates), o único amigo do personagem principal, é visto em diversos momentos do filme com armamentos, fazendo rondas de proteção nas ruas e, já no final do filme, se protegendo durante uma invasão na cidade. Todos esses recrutamentos, de acordo com o contexto da história, são de forma livre e com o consentimento dos familiares. Porém, quando se trata do debate sociológico no cotidiano fora do filme, como expõe Mukherjee, é difícil diferenciar recrutamento forçado de crianças para conflitos armados e a sua participação voluntária nos mesmos, pois:
Desconstruí-las depende muito do contexto social: o modo como se desenham os limites quotidianos da violência numa dada sociedade e a estrutura mais vasta do aparelho de estado, as relações de género, as divisões étnicas e de classe, nas quais as ideias de conflito, noções culturais de infância e quadros prevalentes para a resolução de conflito estão inseridos. (Mukherjee, 2021, p.144)
Sobre o acampamento Juventude Hitlerista, é interessante pontuar que as ações de Jojo com o objetivo de fazer parte do grupo, direciona a reflexão sobre a relação das crianças e seus pares. Segundo Corsaro, citado por Ferreira (2020), a cultura de pares é um conjunto de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e partilham na interação com seus pares, ou seja, sugere a apropriação, reinvenção e reprodução de culturas de mundo no contexto em que as crianças se encaixam. Esse acampamento possuía um objetivo considerado essencial para a evolução social do nazismo, pois:
‘‘A partir de 1933, a "Juventude Hitlerista" e a "Liga das Moças Alemãs" (...) por meio destas organizações, o regime nazista planejava doutrinar os jovens com a ideologia nazista. (...) O objetivo deste processo era o de desmantelar as estruturas sociais e as tradições existentes (...) assim os jovens em toda a Alemanha usavam os mesmos uniformes, cantavam as mesmas canções nazistas e participavam de atividades semelhantes.’’ (Holocaust Encyclopedia)
A formação desse acampamento é um exemplo de como a formação de grupos infantis funcionam sob influência dos adultos: com base em valores e objetivos da comunidade próxima, partilhando tempos, ações, representações e diferentes emoções; é possível notar durante o filme, exemplificando a realidade ocorrida, uma diferenciação de gênero, onde, enquanto as meninas e adolescentes do sexo feminino se preparavam para seu futuro como esposas e mães, os meninos e rapazes participavam de treinamento militar.
Yoohoo, Jude: a reprodução interpretativa e ludicidade
Após lesionar-se e não poder mais ficar nas atividades perigosas, a mãe de Jojo certifica-se de que o filho estará entretido e cooperando de alguma forma no Juventude Hitlerista, visto que é a vontade do menino; Jojo é alocado para ser, basicamente, um faz-tudo deles, colando cartazes nas ruas, procurando materiais para produção de armamento e outras tarefas mais simples. Apesar de não ser favorável para a situação do filme, é instigante e significativa a liberdade/autonomia que Rosie, a mãe, oferece ao filho; essa relação familiar logo será pautada. Em suma, Jojo ganha com mais tempo livre para ficar em casa sozinho, ocasionando a descoberta sobre Elsa: a menina judia que a mãe dele ajuda e esconde no quarto de sua falecida irmã. Inicialmente, ele pensa em diversas maneiras de entregá-la sem que sua mãe fosse culpada, mas apesar de possuírem uma relação desconfiada e duvidosa inicialmente, aos poucos, Jojo e Elsa conseguem estabelecer um contato amigável que ajuda ambos a sobreviver.
No decorrer da evolução da relação das duas crianças, Jojo começa a escrever um livro, ‘‘Yoohoo, Jude’’ (Traduzindo: Eu, judeu) sobre como judeus pensam, se comportam e se parecem; todos esses relatos ou são de adultos que usam essas definições para soar ‘‘engraçado’’ e ofensivo ou, então, são histórias inventadas por Elsa de uma forma fantasiosa para entreter o menino, que ele considera como verdades; a participação dela foi uma condição que ele ofereceu para não a entregar. Através desses desenhos e pequenos textos, a criação desse livro durante dias serviu como iniciativa para a troca de diálogos, bom convívio e apoio que ambos precisavam nesses momentos. Logo, é possível caracterizar essa interação como uma confirmação dos dizeres de Sarmento (2021) que, ao citar Corsaro, introduz que:
‘‘(...) processos simbólicos das crianças se desenvolvem em torno da “reprodução interpretativa” da herança cultural adulta: as crianças recebem-na e redefinem-na, inventando novos significados e temas nas suas interações com outras crianças, fortemente marcadas pelas ludicidades e a criatividade infantil. (Sarmento, 2021, p.182)
Dessa forma, durante o filme, o lúdico em conjunto com a reprodução interpretativa elabora uma nova forma de enxergar o mundo dos dois personagens, dessa vez livres da influência dos adultos. Nesse processo, a diferença de mundos entre Jojo e Elsa é fundamental para que o primeiro consiga, do seu modo, ressignificar os acontecimentos recentes da sua vida, principalmente quando ele descobre que sua mãe morreu, ao vê-la enforcada na praça de sua cidade. É uma sequência de cenas/acontecimentos incrível, não só pela fotografia, mas também pela dureza que é exposta pela visão de Jojo e forma que o filme é guiado; é essencial abrir um espaço para elogiar como o filme foi bem conduzido:
Esta é a forma de Waititi expandir a compreensão do espectador, ao não transformar sua narrativa numa sucessão de sequências de suspense. (...) A cada cena, eles se tornam mais humanos, solidários, confiantes e capazes de grandes gestos. É o contraponto à violência, destruição e extermínio a ocorrer nas ruas, nos campos e nos corredores das repartições governadas pelos nazistas. (Geraldo, 2020)
Meu melhor amigo (imaginário) Hitler
Jojo tem como relação familiar apenas sua mãe, sua irmã faleceu e seu pai está na guerra, sem notícias recentes; mesmo que relação mãe-filho seja tranquila e acolhedora, o menino é solitário na maior parte dos dias, pois sua mãe trabalha o dia todo. Rosie é uma figura materna que, apesar da ausência, intensamente estimula as curiosidades, os questionamentos e a autonomia de seu filho, principalmente quando o provoca na tentativa de expor o lado ruim do nazismo; tentativa falha de fazê-lo enxergar a realidade. Mesmo que tardio o efeito, os ensinamentos de Rosie foram importantes para que o personagem tomasse decisões e enfrentasse o que estava por vir, logo:
O adulto é a base na qual as crianças constroem sua autonomia (...) os adultos devem abrir espaço para o diálogo, intervir no momento apropriado, auxiliar as crianças na busca de entendimentos, permitir errar sem julgamentos, acreditar que para haver uma autonomia por parte da criança é importante deixar a criança ser criança. (MORAIS VIEIRA, 2009, p.6)
Além disso, Rosie é a figura que mais impulsiona o lado criativo de Jojo, diante desses fatores de contexto social histórico, incentivo criativo e o deslocamento no quesito amizades, Jojo procura pertencer abraçando o imaginário coletivo da época. A literatura psicológica aponta que a vivência de um amigo imaginário é frequente na infância e pode ser um componente do desenvolvimento infantil (Marion et al, 2018), como uma forma de auxiliar as crianças a aperfeiçoar suas habilidades sociais e um meio criança expressar sua criatividade. ‘‘Estudos indicam ainda que meninos costumam imaginar amigos com características e habilidades superiores às deles’’ (ibidem), a imagem do führer se encaixa perfeitamente; ele, além de ser um exemplo de força e superioridade, instiga Jojo a alcançar e lutar pelo seu objetivo.
Contudo, depois que o menino desenvolve afeto por Elza e começa a entender a representação de Hitler e o que o nazismo trouxe como consequência na vida dele, aos poucos a tal figura desmorona. Hitler deixa de ser melhor amigo para transformar-se em um vilão que ele começa a confrontar/rejeitar, principalmente após ter que sobreviver sozinho e formular diferenças entre ele e Hitler socialmente. Gradualmente, a imagem de Hitler diminui a frequência de aparições, principalmente depois que seu amigo revela que Hitler se matou e Jojo o chuta da sua vida, de forma literal.
Conclusão
‘‘Jojo Rabbit’’ é um filme que oferece diversos temas para quem o assiste, ele trata de temas difíceis como antissemitismo, nazismo, preconceito, guerra, perda de pais, de violência, do crescimento, tantos outros de uma maneira delicada, engraçada e apropriada para ser vista tanto por crianças como por adultos. A representação de como a criança está vivenciando o contexto da Segunda Guerra Mundial entrega de forma satisfatória, não só a evolução do personagem em relação às suas verdades naquele contexto histórico, mas também analisar os conceitos que cercam essa mudança e como os mesmos auxiliam nesse desenvolvimento. O filme constitui-se como instrumento importante de análise das culturas infantis, dessa forma, coopera também com o surgimento de novas obras que retratam as crianças e as culturas da infância como elementos centrais para o entendimento de temas contemporâneos.
Como citar:
FARIAS, Alana Mara. A representação da infância em 'Jojo Rabbit' (2019). Blog AMF, Salvador, 27 de julho de 2022. Disponível em: https://alanamarafarias.wixsite.com/blog/post/a-representação-da-infância-em-jojo-rabbit-2019
Referências
CORSARO, W. A Sociologia da infância. Califórnia: Pine Forge, 1997.
FERREIRA, Manuela. Brincar. Conceitos-chave em Sociologia da Infância. Perspetivas Globais / Key concepts on Sociology of Childhood. Global Perspectives.
FERREIRA, Flávia Martinelli. Cinema e culturas infantis: as contribuições de Jojo Rabbit para pensar a infância. Revista Educação Pública, v. 20, nº 48, 15 de dezembro de 2020. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/20/48/cinema-e-culturas-infantis-as-contribuicoes-de-ijojo-rabbiti-para-pensar-a-infancia
GERALDO, Cloves. “Jojo Rabbit”: Marcas da infância perdida. Vermelho: A esquerda bem informada, 2020
JOJO RABBIT. Direção de Taika Waititi. Hollywood: Fox Searchlight Pictures, 2019. (108 min.)
MARION, Juliana; LONDERO, Angélica Dotto; PEREIRA, Caroline Rubin Rossato e SOUZA, Ana Paula Ramos de. O AMIGO IMAGINÁRIO NA VISÃO DE PSICÓLOGOS E PSIQUIATRAS INFANTIS. Psicol. rev. (Belo Horizonte) [online]. 2018, vol.24, n.3, pp. 812-833
Morais Vieira, A. de. (2009). Autoridade e autonomia: uma relação entre a criança e a família no contexto infantil. Revista Iberoamericana De Educación, 49(5).
MUKHERJEE, Utsa. Criança-Soldado. Conceitos-chave em Sociologia da Infância. Perspetivas Globais/Key concepts on Sociology of Childhood. Global Perspectives.
SARMENTO, Manuel. Culturas Infantis. Conceitos-chave em Sociologia da Infância. Perspetivas Globais/Key concepts on Sociology of Childhood. Global Perspectives.
THE UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. Holocaust Encyclopedia. Recursos em Português (do Brasil). Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/hitler-youth-2. Acesso em: 28 maio 2022.
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